Como é que se Esquece Alguém que
se Ama?
Como é que se esquece alguém que
se ama? Como é que se esquece alguém que nos faz falta e que nos custa mais
lembrar que viver? Quando alguém se vai embora de repente como é que se faz
para ficar? Quando alguém morre, quando alguém se separa - como é que se faz
quando a pessoa de quem se precisa já lá não está? As pessoas têm de morrer; os
amores de acabar. As pessoas têm de partir, os sítios têm de ficar longe uns
dos outros, os tempos têm de mudar Sim, mas como se faz? Como se esquece?
Devagar. É preciso esquecer devagar. Se uma pessoa tenta esquecer-se de
repente, a outra pode ficar-lhe para sempre. Podem pôr-se processos e acções de
despejo a quem se tem no coração, fazer os maiores escarcéus, entrar nas
maiores peixeiradas, mas não se podem despejar de repente. Elas não saem de lá.
Estúpidas! É preciso aguentar. Já ninguém está para isso, mas é preciso
aguentar. A primeira parte de qualquer cura é aceitar-se que se está doente. É
preciso paciência. O pior é que vivemos tempos imediatos em que já ninguém aguenta
nada. Ninguém aguenta a dor. De cabeça ou do coração. Ninguém aguenta estar
triste. Ninguém aguenta estar sozinho. Tomam-se conselhos e comprimidos.
Procuram-se escapes e alternativas. Mas a tristeza só há-de passar
entristecendo-se. Não se pode esquecer alguém antes de terminar de lembrá-lo.
Quem procura evitar o luto, prolonga-o no tempo e desonra-o na alma. A saudade
é uma dor que pode passar depois de devidamente doída, devidamente honrada. É
uma dor que é preciso aceitar, primeiro, aceitar. É preciso aceitar esta mágoa
esta moinha, que nos despedaça o coração e que nos mói mesmo e que nos dá cabo
do juízo. É preciso aceitar o amor e a morte, a separação e a tristeza, a falta
de lógica, a falta de justiça, a falta de solução. Quantos problemas do mundo
seriam menos pesados se tivessem apenas o peso que têm em si, isto é, se os
livrássemos da carga que lhes damos, aceitando que não têm solução. Não adianta
fugir com o rabo à seringa. Muitas vezes nem há seringa. Nem injecção. Nem
remédio. Nem conhecimento certo da doença de que se padece. Muitas vezes só
existe a agulha. Dizem-nos, para esquecer, para ocupar a cabeça, para trabalhar
mais, para distrair a vista, para nos divertirmos mais, mas quanto mais
conseguimos fugir, mais temos mais tarde de enfrentar. Fica tudo à nossa
espera. Acumula-se-nos tudo na alma, fica tudo desarrumado. O esquecimento não
tem arte. Os momentos de esquecimento, conseguidos com grande custo, com
comprimidos e amigos e livros e copos, pagam-se depois em condoídas lembranças a
dobrar. Para esquecer é preciso deixar correr o coração, de lembrança em
lembrança, na esperança de ele se cansar.
Miguel Esteves
Cardoso, in 'Último Volume'